29 de nov. de 2020

Memórias do Subsolo – Fiódor Dostoiévski

Memórias do Subsolo


De acordo com a introdução de Richard Pevear, tradutor da edição publicada pela Everyman's Library, Memórias do Subsolo (1864) trata-se de um antilivro por reunir características que conflitam diretamente com a literatura popularmente empregada no pensamento russo (Pushkin, Lérmontov, Tchernichevski, Kant, Schiller, Byron, Rousseau, e, principalmente, Niztche) durante a época em que foi escrito.


O livro consiste em notas do homem do subsolo, não em notas do próprio Dostoiévski, mas é como se assim o fosse, dada a coincidência entre as notas e as declarações do autor. Tanto que muitos estudiosos afirmam que o livro se trata das próprias posições ideológicas de Dostoiévski, além da sua trágica e triste visão. Entretanto, existe uma diferença entre personagem e autor, que consiste em uma dose extra de sarcasmo encontrada somente no homem do subsolo. São incontáveis os ataques de risos e deboche durante a narrativa.


E é justamente a partir de Memórias do Subsolo que Dostoiévski parece ter encontrado um estilo propício para suas próximas obras (cita-se; Crime e Castigo, O Idiota, Os Demônios e Os Irmãos Karamazov). É através do distanciamento com seus personagens, que o autor se tona capaz de apresentá-los por diferentes ângulos, ao passo que mantêm intacto o seu pensamento.


Quem é o homem do subsolo?

Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável.


O homem do subsolo é a encarnação legítima do pensamento revolucionário que tanto Dostoiévski nos alerta de seus desdobramentos. O homem do subsolo é um ser desprezível, rancoroso, que, em um primeiro momento, assume uma posição heroica, de salvador da humanidade, que julga tudo saber resolver, para no parágrafo seguinte, assumir a sua covardia e sua incapacidade de resolver os próprios dilemas, o que vai desencadear um sofrimento ainda maior, pois suas ações refletem negativamente na vida daquelas pessoas das quais tiveram o azar de encontrá-lo. Se tudo que ele busca é mostrar o quão superior é o seu racionalismo, na prática sua vida não passa da mais miserável possível.


Por ser tão fraco, a ponto não conseguir escapar de uma vida medíocre, o homem do subsolo guarda um tremendo ressentimento para com todos, como no caso dos coitados subordinados quando o narrador era ainda um burocrata e usava sua posição para atormentá-los, ou no de seus ex-colegas de infância que claramente não desejavam a sua presença em um jantar entre verdadeiros amigos. Por último, temos ainda o imbróglio com Liza, a infeliz prostituta da qual o homem do subsolo prometeu ajudá-la a mudar de vida, mas que termina ainda mais humilhada por este. 


O pensamento de Dostoiévski durante o processo de escrita de Memórias do Subsolo:

Em artigos que datam de 1869, sobre suas visitas à Europa, Dostoiévski já alertava sobre o fato de que todo o desenvolvimento da sociedade Russa encontrava-se calcado em ideias importadas das linhas europeias, estando aí a origem do problema suscitado pelo seu distinto personagem que se autoproclama um homem desenvolvido do século XIX, sendo que esse desenvolvimento é o que lhe condiciona ao subsolo. 

Assim, os dois períodos que dividem o livro representam dois estágios da evolução da intelligentsia russa: o sentimental (década de 1840) e o racional e utilitário (década de 1860). No livro, o polemista personagem da primeira parte surgiu do sonhador derrotado da segunda parte. A proposital inversão do tempo durante a narrativa, leva o leitor a descoberta de uma mentalidade drasticamente intransitiva e dividida.

Não à toa, o homem do subsolo conversa com pessoas determinadas; os radicais revolucionários, especificamente os seguidores de Tchernichevski. Ao questionar a verdadeira natureza humana que estava sujeita ao desejo revolucionário de lhe tornar feliz (ideia tal que vai permear o pensamento de Lenin, que confessou ter se tornado radical por meio desta), Dostoiévski responde Tchernichevski tanto ideológica como artisticamente. Os termos pseudocientíficos utilizados pelo narrador, por exemplo, é um claro escárnio à escrita revolucionária. 

Como Dostoiévski temia, o estilo literário de Tchernichevski dominou o pensamento russo, e o que prometia uma sociedade feliz em Que Fazer? (1862), na verdade a levou para miséria e autodestruição. Dostoiévski percebeu tais relações como nenhum outro de seu tempo. Filosoficamente, o autor utiliza o homem do subsolo para refutar seus oponentes, levando a ideia destes ao extremo, tendo como resultado o próprio homem do subsolo.

Quereis, por exemplo, desacostumar uma pessoa dos seus velhos hábitos e corrigir-lhe a vontade, de acordo com as exigências da ciência e do bom senso. Mas como sabeis que o homem não apenas pode, mas deve ser assim transformado? De onde concluís que à vontade humana é tão indispensavelmente necessário corrigir-se? Numa palavra, como sabeis que uma tal correção realmente trará vantagem ao homem? E, se é para dizer tudo, por que estais tão certamente convictos de que não ir contra as vantagens reais, normais, asseguradas pelas conclusões da razão e pela aritmética, é de fato sempre vantajoso para o homem e constitui uma lei para toda a humanidade?

Dostoiévski questiona se o reformador seria capaz de reforma-se a si mesmo, ou será que suas leis para toda a humanidade não lhe alcançariam? A ideia é de que não existem super-homens. Todos estão condenados ao sofrimento, e ainda que restasse possível resolver os problemas materiais através de um plano reformador, em que todas as ações fossem perfeitamente calculadas, previsíveis, haveria ainda um único ponto que os reformadores não deixaram claro se topariam corrigir: a própria existência individual. Assim Dostoiévski elabora:

[...] o homem é um animal criador por excelência, condenado a tender conscientemente para um objetivo e a ocupar-se da arte da engenharia, isto é, abrir para si mesmo um caminho, eterna e incessantemente, para onde quer que seja. Mas talvez precisamente por isto lhe venha às vezes uma vontade de se desviar, justamente por estar condenado a abrir esse caminho, e talvez ainda porque, por mais estúpido que seja um homem direto e de ação, ocorre-lhe às vezes que o caminho vai quase sempre para alguma parte, e que o principal não está em saber para onde se dirige, mas simplesmente em que se dirija, e em que a criança comportada, desprezando a arte da engenharia, não se entregue à ociosidade destruidora, que, como se sabe, é mãe de todos os vícios. O homem gosta de criar e de abrir estradas, isto é indiscutível. Mas por que ama também, até a paixão, a destruição e o caos? 

Em outra passagem, ao atacar o racionalismo aplicado ao “cientificismo social”, procede ainda o autor: 

Gritais (se ainda vos dignais a dirigir-me o grito) que, no caso, ninguém me priva da minha vontade; que todos se afanam a fim de que, por si mesma, por própria iniciativa, minha vontade coincida com os meus interesses normais, com as leis da natureza e com a aritmética.


— Eh, senhores, como é que se pode ter, no caso, sua própria vontade, quando se trata da tabela e da aritmética, quando está em movimento apenas o dois e dois são quatro? Dois e dois são quatro mesmo sem a minha vontade. Acontece porventura uma vontade própria deste tipo?

Memórias do Subsolo

O homem não é uma tecla de piano: uma crítica ao igualitarismo utópico

Ora, estaria o planejador, o grande reformador da sociedade, a salvo desta fatalidade? Saberia ele dirigir a sociedade ao seu destino, do bem comum, da felicidade, sem titubear no caminho, nem por um momento? Está aí genialidade do autor; nua, crua, e drasticamente bela. Todos os pilotos da humanidade, sem exceção, desviaram tanto dos destinos espetaculares, que invariavelmente, acabaram guiando de fato a humanidade para o lugar comum do caos, da destruição, da torpeza. Lugar este, muito distante, senão em sentido completamente oposto ao fantástico destino inicialmente pretendido, como inúmeras vezes tem provado a historia.
 
Uma das melhores qualidades de Dostoiévski é que ele não brinca em serviço quando o assunto é levar ao extremo as mais delicadas questões. É no mais profundo âmago da coisa que autor faz emergir aquelas respostas transcendentais, puramente verdadeiras. O recado deixado pelo gênio da literatura russo aos revolucionários é um exemplo: o homem não é uma tecla de piano!

Numa palavra, pode-se dizer tudo da história universal — tudo quanto possa ocorrer à imaginação mais exaltada. Só não se pode dizer o seguinte: que é sensata. Haveis de engasgar na primeira palavra. E aí está até o que a todo momento se dá: surgem continuamente homens de bons costumes, sensatos, sábios e amantes da espécie humana, que têm justamente como objetivo portar-se, a vida toda, do modo mais moral e sensato, iluminar, por assim dizer, com a sua pessoa, o caminho para o próximo, e precisamente para demonstrar a este que, de fato, se pode viver de modo moral e sensato. E então? É sabido que muitos desses amantes da humanidade, cedo ou tarde, às vezes no fim da existência, traíram-se, dando motivos a  anedotas às vezes do gênero mais indecente até. Pergunto-vos agora: o que se pode esperar do homem, como criatura provida de tão estranhas qualidades? Podeis cobri-lo de todos os bens terrestres, afogá-lo em felicidade, de tal modo que apenas umas bolhazinhas apareçam na superfície desta, como se fosse a superfície da água; dar-lhe tal fartura, do ponto de vista econômico, que ele não tenha mais nada a fazer a não ser dormir, comer pão de ló e cuidar da continuação da história universal — pois mesmo neste caso o homem, unicamente por ingratidão e pasquinada, há de cometer alguma ignomínia. Vai arriscar até o pão de ló e desejar, intencionalmente, o absurdo mais destrutivo, o mais antieconômico, apenas para acrescentar a toda esta sensatez positiva o seu elemento fantástico e destrutivo. Desejará conservar justamente os seus sonhos fantásticos, a sua mais vulgar estupidez, só para confirmar a si mesmo (como se isto fosse absolutamente indispensável) que os homens são sempre homens e não teclas de piano, que as próprias leis da natureza tocam e ameaçam tocar de tal modo que atinjam um ponto em que não se possa desejar nada fora do calendário. Mais ainda: mesmo que ele realmente mostrasse ser uma tecla de piano, mesmo que isto lhe fosse demonstrado, por meio das ciências naturais e da matemática, ainda assim ele não se tornaria razoável e cometeria intencionalmente alguma inconveniência, apenas por ingratidão e justamente para insistir na sua posição. E, no caso de não ter meios para tanto, inventaria a destruição e o caos, inventaria diferentes sofrimentos e, apesar de tudo, insistiria no que é seu! Lançaria a maldição pelo mundo e, visto que somente o homem pode amaldiçoar (é um privilégio seu, a principal das qualidades que o distinguem dos outros animais), provavelmente com a mera maldição alcançaria o que lhe cabe: continuaria convicto de ser um homem e não uma tecla de piano! Se me disserdes que tudo isso também se pode calcular numa tabela, o caos, a treva, a maldição — de modo que a simples possibilidade de um cálculo prévio vai tudo deter, prevalecendo a razão —, vou responder-vos que o homem se tornará louco intencionalmente, para não ter razão e insistir no que é seu! Creio nisto, respondo por isto, pois, segundo parece, toda a obra humana realmente consiste apenas em que o homem, a cada momento, demonstre a si mesmo que é um homem e não uma tecla! 

E é nas últimas linhas de Memórias do Subsolo que, tal qual uma faca precisamente afiada, Dostoiévski cria um rasgo nas pretensões revolucionárias, justamente ao revelar que toda sua narrativa consistiu em levar a cabo aquilo que os próprios revolucionários não têm sequer coragem de fazer pela metade: 

De fato, contar, por exemplo, longas novelas sobre como eu fiz fracassar a minha vida por meio do apodrecimento moral a um canto, da insuficiência do ambiente, desacostumando-me de tudo o que é vivo por meio de um enraivecido rancor no subsolo, por Deus que não é interessante: um romance precisa de herói e, no caso, foram acumulados intencionalmente todos os traços de um anti-herói, e, principalmente, tudo isto dará uma impressão extremamente desagradável, porque todos nós estávamos desacostumados da vida, todos capengamos, uns mais, outros menos. Desacostumamo-nos mesmo a tal ponto que sentimos por vezes certa repulsa pela “vida viva”, e achamos intolerável que alguém a lembre a nós. Chegamos a tal ponto que a “vida viva” autêntica é considerada por nós quase um trabalho, um emprego, e todos concordamos no íntimo que seguir os livros é melhor. E por que nos agitamos às vezes, por que fazemos extravagâncias? O que pedimos? Nós mesmos não o sabemos. Será pior para nós mesmos se forem satisfeitos os nossos extravagantes pedidos. Bem, experimentai, por exemplo, dar-nos mais independência, desamarrai a qualquer de nós as mãos, alargai o nosso círculo de atividade, enfraquecei a tutela e nós... eu vos asseguro, no mesmo instante pediremos que se estenda novamente sobre nós a tutela. Sei que talvez ficareis zangados comigo por causa disto, e gritareis, batendo os pés: “Fale de si mesmo e das suas misérias no subsolo, mas não se atreva a dizer ‘todos nós’”. Mas com licença, meus senhores, eu não me estou justificando com este todos. E, no que se refere a mim, apenas levei até o extremo, em minha vida, aquilo que não ousastes levar até a metade sequer, e ainda tomastes a vossa covardia por sensatez, e assim vos consolastes, enganando-vos a vós mesmos. De modo que eu talvez esteja ainda mais “vivo” que vós. Olhai melhor! Nem mesmo sabemos onde habita agora o que é vivo, o que ele é, como se chama. Deixai-nos sozinhos, sem um livro, e imediatamente ficaremos confusos, vamos perder-nos; não saberemos a quem aderir, a quem nos ater, o que amar e o que odiar, o que respeitar e o que desprezar. Para nós é pesado, até, ser gente, gente com corpo e sangue autênticos, próprios; temos vergonha disso, consideramos tal fato um opróbrio e procuramos ser uns homens gerais que nunca existiram. Somos natimortos, já que não nascemos de pais vivos, e isto nos agrada cada vez mais. Em breve, inventaremos algum modo de nascer de uma ideia. Mas chega; não quero mais escrever “do Subsolo”...

Leitura fortemente recomendada, principalmente aos revolucionários contemporâneos. 


Material Complementar: 


O Homem não é uma tecla de piano – Prof. Jordan Peterson

 


Memórias do Subsolo – Interpretação por Larry Cedar


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Caso tenha gostado, veja também: Crime e Castigo – Fiódor Dostoiévski


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