17 de out. de 2021

Crime e Castigo – Fiódor Dostoiévski

Crime and Punishment Everyman's Library

O que leva uma pessoa a matar a sangue frio? O que está por trás da mente de um assassino? Qual arranjo político-filosófico de uma sociedade que faz brotar pessoas desse tipo?


Foi ao levantar essas questões que Fiódor Dostoiévski escreveu um dos mais conhecidos trabalhos de toda a literatura russa; Crime e Castigo.


Ao deixar para trás uma carreira militar promissora em troca da escrita, o jovem Dostoiévski foi atraído pelos ideais socialistas e revolucionário que ganhavam espaço na subcultura russa por meio de círculos secretos de discursões intelectuais sobre obras banidas pelo Império Tsarista.


Após a exposição do grupo frequentado por Dostoiévski, seus participantes, incluindo o próprio Dostoiévski, foram sentenciados a pena de morte. 


No momento derradeiro, com a ordem de atirar prestes a ser executada, um mensageiro do governo surge com a notícia de que o Tsar havia substituído a pena de morte pela de trabalho forçado, de forma a demonstrar o quanto era misericordioso, ou seja, uma charada para os revolucionários que pensavam justamente o contrário. Um dos companheiros de Dostoiévski enlouqueceu ali mesmo (tal fato é inclusive descrito em detalhes em “O Idiota”).


Sem dúvidas, tal evento foi responsável por uma radical transformação dos ideais de Dostoiévski. Se no embarque para a Sibéria tínhamos um provável cético, membro de uma conspiração contra a ordem política vigente, o mesmo não pode ser atribuído ao Dostoiévski que retornou de sua pena; um autor que fez da escrita sua religiosa missão, com uma visão social e política cada vez mais íntima dos ideais conservadores.


Após sua jornada na Sibéria, com uma visão pessimista acerca da reforma socialista, foi em 1864 que nasceu Memórias do Subsolo, onde Dostoiévski expõe ao limite os ideais revolucionários difundidos pelos autores  da época (em especial Tchernichevski e seus seguidores), ao demonstrar que tais ideias são incapazes de satisfazer os interesses mais profundos na natureza humana.


Na mesma pegada, Crime e Castigo foi concluído no ano seguinte, em 1865, retrabalhando e expandindo os temas discutidos em Memórias do Subsolo.


Crime and Punishment Everyman's Library

Primeiramente publicado em formato de série em uma revista literária conduzida pelo próprio irmão de Dostoievsky, o romance trata do drama psicológico enfrentado por Raskólnikov, um jovem estudante de direito, tendo como palco a cidade de São Petersburgo.


Raskólnikov vive na mais completa miséria; sem trabalho, sem dinheiro, sem comida e só não sem teto pela misericórdia do autor, que permite, com propósito, a morada do herói no quarto mais abjeto e claustrofóbico de um alojamento petersburguense. 


Sem condições de custear seus estudos e ao perceber o quanto sua mãe e irmã têm se sacrificado pelo seu sucesso, Raskólnikov chega ao que inicialmente seria a resolução de todos os seus problemas; o latrocínio de uma velha agiota, a qual Raskólnikov penhorou seus últimos bens.


Apesar de toda a justificativa racional criada por Raskólnikov para cometer tal crime, é evidente que o personagem não estava nenhum pouco preparado para as consequências do seu ato vil. 


É justamente ao descrever a corrompida mentalidade de Raskólnikov, por meio de um processo literalmente psicográfico, que Dostoievsky assina sua consagrada obra.


Crime e Castigo dá vida às frias ruas de São Petersburgo do desfechar do sec. 19, com suas tavernas sombrias, apartamentos dilapidados, e uma repugnante delegacia. 


Neste ponto, cabe destacar que, uma vez que o leitor é trancado na mente do controverso personagem central da história, tal ambientação se trata da própria ótica doentia de Raskólnikov sobre a cidade. Ora, tudo é sombrio para quem vive nas sombras. O que explica, por exemplo, o fato do quarto do personagem, apesar de ser descrito como um cubículo, conseguir comportar cenas com cinco ou mais personagens. 


Ademais, cumpre destacar que este retrato desolado da sociedade Russa reflete também a própria complexidade das experiências vivenciadas pelo Autor.


E é nessa mesma ambientação que Dostoiévski introduz ao leitor personagens únicos, como Mameladov, um miserável alcoólatra capaz de beber até a ruina de sua família, e Lújin, o tirânico advogado interessado em comprar o casamento de Dúnia, a pura, bela e amável irmã de Raskólnikov. 


E como não falar em Porfiri? Juiz de instrução encarregado em desvendar o assassinato da velha agiota, cirúrgico em seus jogos psicológicos sobre a mente do enigmático Raskólnikov, que aos poucos deixa se entregar por meio de suas próprias ações/declarações.    




Vale frisar que o desenrolar da trama de Crime e Castigo não se limita ao mero desvendar do crime cometido por Raskólnikov, que na verdade serve apenas como pano de fundo para a história. A genialidade da obra está na exposição dos ideais que levam o herói a cometer ato tão bárbaro, bem como seus desdobramentos.


Para Raskólnikov existe uma razão que justifica o seu crime. O assassinato da velha agiota, não só resolveria a situação financeira e a vida do herói, mas também serviria um proposito maior, pois removeria da sociedade uma pessoa que se aproveita da miséria alheia, uma pessoa que, na mente racional de Raskólnikov, em nada contribuía para a sociedade, logo a sua morte seria algo benéfico, utilitário. 


Ora, para Raskólnikov o assassinato da velha agiota era tão justificável quanto todo o derramamento de sangue das guerras napoleônicas, tanto que o próprio chegou a produzir um artigo completamente racional sobre o assunto.


É com essa egocêntrica razão que Raskólnikov acredita ser capaz de transcender tabus morais, sem nenhum custo para sua existência humana. É quando Dostoiévski, nos mostra, então, através do dilema psicológico enfrentado por Raskólnikov, a verdadeira natureza do castigo imposto ao personagem. Castigo este infligido pela própria razão.


Nas palavras de Raskólnikov;


Dor e sofrimento são sempre inevitáveis para uma inteligência ampla e um coração profundo.


Após uma primeira leitura, creio que ainda que fosse possível revisitar Crime e Castigo por mais cem vezes, mesmo assim não seria o suficiente para digerir toda a obra. Então, quem sabe, essas notas sirvam de comparação para visitas futuras. 


Até a próxima. 


Caso tenha gostado, veja também: Memórias do Subsolo – Fiódor Dostoiévski


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